Num país onde a resposta policial aos acidentes rodoviários e a primeira linha de investigação é feita pela PSP ou pela GNR, há uma rede discreta mas relevante de empresas privadas que trabalham, a pedido de seguradoras, advogados ou tribunais, para “decifrar” o que realmente aconteceu numa colisão.
Estas equipas funcionam como uma espécie de CSI da investigação rodoviária: juntam vestígios, dados e engenharia para reconstruir cenários, provar (ou excluir) responsabilidades e detectar possíveis fraudes, sobretudo quando estão em jogo indemnizações elevadas.
O que fazem as empresas que investigam acidentes?
Quando uma seguradora suspeita de incongruências (declarações contraditórias, danos incompatíveis com o relato ou testemunhos duvidosos, por exemplo) ou quando as indemnizações previstas são muito elevadas, pode contratar uma equipa especializada para:
- Analisar o local do acidente (quando ainda é possível) ou trabalhar a partir de fotos e croquis;
- Examinar os veículos, nomeadamente quanto a padrões de deformação, pontos de impacto, compatibilidade entre danos e versão dos condutores;
- Recolher e interpretar dados electrónicos, se estes estiverem disponíveis. Nomeadamente registos da unidade de controlo do veículo (a chamada “caixa preta”/ECU), como dados de sensores, event data recorder, telemática e registos de serviços;
- Avaliar vestígios físicos como marcas de travagem, restos de pintura, trajetórias de impacto, detenções e objetos projetados;
- Entrevistar testemunhas, rever declarações e confrontar versões com a evidência técnica;
- Simular a dinâmica do acidente utilizando software de reconstrução ou modelos físicos para testar hipóteses de velocidade, ângulos e tempos de reação;
- Procurar sinais de fraude, como danos preexistentes mal descritos, encobrimento de causas (por exemplo, condução sob álcool), ou declarações combinadas entre intervenientes.
O produto final é um relatório técnico pericial, com desenhos, simulações e conclusões técnicas. Esse relatório serve para a seguradora decidir aceitação/recusa de um sinistro, negociar indemnizações ou, se necessário, suportar uma ação em tribunal.
O trabalho que estas empresas privadas desenvolvem não substitui – antes complementa – o trabalho das autoridades oficiais.
Que papel tem a Polícia neste contexto?
As forças policiais (PSP/GNR) fazem o auto de notícia e recolhem prova oficial no local.
As equipas privadas não substituem o trabalho policial, nem têm acesso automático a documentos sigilosos. O que fazem é complementar o trabalho das entidades oficiais, ao desenvolver uma análise técnica aprofundada, reconstituindo cenários com ferramentas de engenharia e, em muitos casos, conseguindo explicar detalhes microscópicos que não constam no auto policial.
Quando um processo vai a tribunal, os relatórios das empresas privadas podem ter grande peso, especialmente se assinados por peritos com currículo, formação adequada e metodologia reconhecida.
Em tribunal, o que conta é a qualidade técnica, a transparência metodológica e a capacidade de demonstrar, passo a passo, como se chegou a cada conclusão.
Mas podem usar os dados da Polícia? Quem tem acesso à informação oficial?
As empresas privadas não têm autoridade para requisitar diretamente os autos oficiais ou partes do processo criminal.
Contudo, as seguradoras ou as partes envolvidas (condutor ou o seu advogado) podem pedir uma cópia do relatório policial e partilhá-la com o perito.
Ou seja: os peritos privados podem trabalhar com o auto da ocorrência, por exemplo, desde que este documento lhes seja formalmente entregue por uma das partes autorizadas. Em certas situações processuais, é também possível que o tribunal ou o Ministério Público solicitem perícias externas e ordene o acesso a toda a documentação necessária.
Os relatórios dos técnicos privados de investigação de acidentes rodoviários podem ser determinantes em decisões judiciais, desde que a metodologia de análise e a formação destes peritos sejam claras e robustas.
Que formação têm os investigadores das equipas privadas?
Os colaboradores destas empresas reúnem preferencialmente um conjunto multidisciplinar de competências. São geralmente elementos formados ou com conhecimentos sólidos e atestados em:
- Engenharia Mecânica/Engenharia Eletrotécnica, para entender deformações, estruturas e sistemas do veículo;
- Engenharia Civil/Mecânica com especialização em dinâmica de veículos, para modelar colisões e trajetórias;
- Peritos em reconstrução de acidentes, profissionais formados em metodologias de reconstituição, uso de software de simulação e análise de evidências físicas;
- Técnicos forenses e laboratoriais, quando existe necessidade de análises de materiais, tinta ou peças;
- Especialistas em telemática e análise de dados, para extrair e interpretar registos eletrónicos;
- Ex-agentes policiais ou oficiais com experiência em trânsito, uma vez que conhecem procedimentos, croquis e terminologia dos autos.
Como formação complementar, as empresas desta área costumam proporcionar aos seus colaboradores cursos de actualização em softwares de simulação. Por exemplo, PC-Crash e/ou Virtual Crash, Procedimentos de custódia da prova e rastreabilidade de prova, legislação em vigor aplicável e técnicas de extração de dados de ECUs e/ou de sistemas telemáticos.
Além da base académica, a credibilidade exige certificações, experiência comprovada em perícias e capacidade de explicar tecnicamente as conclusões de forma clara para juízes e jurados.
Quando é que esta investigação faz diferença?
- Em processos civis (indemnizações) o relatório pode provar que uma versão não é compatível com a física do acidente, reduzindo montantes indevidos;
- Em processos criminais pode ajudar a confirmar culpa por negligência, excesso de velocidade ou condução sob influência;
- Na detecção de fraude (ex.: encenação de abalroamentos, danos preexistentes declarados como novos) pode salvar milhões em pagamentos indevidos às seguradoras.
Quantos acidentes rodoviários ocorreram por ano em Portugal?
Os números oficiais (acidentes com vítimas, vítimas mortais, feridos graves/ligeiros) são publicados pela ANSR em relatórios periódicos.
A versão consolidada do relatório anual da ANSR com o quadro estatístico final e os desagregados por tipo de via, região e mês pode ser consultado em ansr.pt












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